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22 de novembro de 2015 | 10h33

TRANSEXUALIDADE:

RENASCER NA MESMA VIDA

Segundo a transexual Maite Schneider, a não identificação com a genital foi um dos motivos que a levou a transformação física e psicológica

Foto: Talita Morais

Maite não mediu esforços para chegar no resultado desejado. Com 30 anos, fez uma autocirurgia, tamanha repulsa que sentia pelo órgão masculino

Talita Morais e Thais Souza

 

 

“Conforme fui crescendo eu sabia que tinha alguma coisa de errado comigo, e assim como os meus pais eu não sabia o que realmente era. Depois de muitos anos, de passar muita vergonha, cansada, eu decidi tirar os meus testículos em casa. Eu sabia que era uma decisão radical, que era um lugar muito sensível, mas eu pesquisei na internet, sabia o passo a passo e assim eu fiz. Fui numa dental que ficava perto da minha casa, comprei anestesia de dentista, bisturi e fio de sutura, foi bem fácil. Avisei um amigo meu da Santa Casa que se eu não ligasse em meia hora, era para levar uma ambulância para a minha casa. No meu quarto, apliquei duas vezes a anestesia, queria o mínimo de dor possível [risos]. Fiz o primeiro corte e foi ok, cortei mais fundo e doeu muito, mesmo, sangrou bastante, eu desmaiei e acordei no hospital com os médicos suspeitando que eu tinha tentado me suicidar pelos meus [naquela época] testículos”.

 

Olhar para o espelho e não se reconhecer foi um dos motivos que levou a curitibana Maite Schneider a realizar 14 intervenções cirúrgicas para trocar de sexo. Quem lhe vê passeando pela rua não imagina que a mulher com traços tão femininos, dona de um par de olhos azuis e sobrancelha marcante tenha nascido como Alexandre Caldas de Miranda. Hoje, o nome masculino não se encontra em seus documentos, já que Maite conquistou na justiça a permissão não somente pela troca do nome, mas também do sobrenome. Hoje, ela tem um novo nome, possui nova genital e algumas cicatrizes que ficaram marcadas na pele. Isso porque Maite tentou tirar os testículos em casa, com o objetivo de tentar minimizar a dor que sentia por não se reconhecer

fisicamente como queria.

 

A princípio, quando criança, o objetivo não era querer ser mulher, mas querer se achar dentro das opções (homem e mulher) presente na época, ser ela. Na infância, as coisas com as quais ela mais se identificava em casa eram as roupas e brincadeiras do universo feminino, o que causava em seus pais e familiares um estranhamento desde cedo. Fazer brincadeiras de menina uma vez causava graça. Mas quando a situação se repetia três ou quatro vezes, os risos dos familiares ficavam de lado e, conforme a idade passava, a graça acabava se transformando em chacota, em problemas para os pais e para o irmão mais velho. “Meus pais sabendo que eu estava sofrendo, lógico que sofre junto. Sofre por não entender, sofre por achar que tinham feito alguma coisa de errado, sofre por ver eu tentando me enquadrar e não conseguindo, sofre por saber que ia sofrer com a sociedade. Mas eles tentaram me ajudar, a conversar comigo, mas na época não se tinha o conhecimento que se

tem hoje”, conta.

 

As primeiras comemorações de Natal foram festejadas em alegria pela família e por ele também, mas alguns anos depois, com 5 anos ele trocava os nomes dos presentes dele com os da irmã, assim, Alexandre passou a receber bonecas ao invés do skate. “Nossa! Era isso mesmo que eu queria”, relembra dando risadas. O skate ficava para a irmã que, ao abrir a embalagem, se decepcionava com o presente tão masculino e, logo, caia no choro.

 

Foi na escola que houve uma percepção maior do que estava acontecendo. Um dia na hora do intervalo algumas crianças o cercaram e o começaram a chamar de “mariquinha”. “Eu fiquei todo feliz, todos estavam rindo e batendo palma, eu achei que fosse algo bom, contei para o meu pai e aí ele me explicou que na verdade, não era bem o que eu estava pensando”, lembra.

 

 

Foto: Thais Souza

Foto:Arquivo Pessoal

Com 16 anos, antes de começar a fazer os tratamentos hormonais. Ainda como Alexandre, fazia carreira de modelo inclusive fora do país. Nos dias atuais ela é atriz, está em cartaz com um monólogo em que ela se leiloa no palco, onde alguém da plateia pode ver como ficou depois de tantas cirurgias, o resultado final da vagina dela

A partir daí, ela começou a colocar o irmão mais velho dele como exemplo e com seis anos, os pais de Alexandre resolveram lhe colocar nas aulas de judô e escotismo. Na época, o irmão mais velho também fazia ambos os esportes e, durante as aulas, quando lhe derrubavam, o golpe em seguida era certeiro. Diferentemente do irmão, que se estimulava e revidava cada golpe recebido, Alexandre só chorava e sentia nojo dos quimonos sujos. As aulas de escotismo também não eram diferentes. Enquanto os outros meninos queriam brincar e se sujar, ele só queria limpar, organizar a barraca e plantar um jardim.

 

Os pais sofreram bastante neste período. Não era pouco comum ver que ele não estava feliz por não conseguir se encaixar, mesmo ainda criança, na sociedade. Os olhos ficavam sempre muito vermelhos de tanto chorar e andava cabisbaixo pela casa. Logo, a culpa tomou conta dos pais, que achavam que todo o problema enfrentado pelo filho era decorrente de alguma falha na criação deles. Guilherme, o mais velho dos irmãos foi o que sentiu mais a falta de um irmão com gostos masculinos, para poder brincar de bonecos, guerras e lutas. Ele também teve de enfrentar alguns outros que faziam chacota com Alexandre. Para Sabrina, a irmã mais nova, foi bem mais fácil, já que ela tinha uma super “irmã”, que dava conselhos de moda, brincava de bonecas, desfiles.

 

“Era tudo muito confuso e eu sentia culpa pelo o que estava acontecendo”, lembra. O pai sempre estava resolvendo os problemas na escola que envolviam Alexandre. Não que fosse um aluno ruim, mas problemas com atividades escolares eram recorrentes principalmente nas aulas de educação física, onde ele sempre arrumava alguma desculpa para não participar da aula, seja inventando alguma doença ou mal estar. “Eu mandava muito bem na questão teórica, qualquer um podia me perguntar qual era a medida de uma quadra de futsal, por exemplo. Eu sabia tudo na ponta da língua. Mas jogar futsal? Nem pensar! Eu não queria e sempre que me forçavam a jogar, era a última a ser escolhida”, disse.

 

Além dessas situações, ir ao banheiro uma atividade corriqueira e simples, era bastante complicado para Alexandre, assim como para outros transexuais. “Eu fazia xixi na fralda até os 15 anos de idade. Isso acontecia quando eu passava longos períodos fora de casa, quando eu ia para a escola, por exemplo, então optava por usar fralda, justamente por não gostar de utilizar o banheiro masculino”, conta. Causava um certo incomodo por causa das roupas, mas nada comparado a ter que entrar em um banheiro que não se identifica. Neste período foi muito importante o apoio e compreensão dos pais que mesmo ainda sem entender direito o que acontecia com o filho aceitaram a ideia de usar fraldas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Só quando estava com 16 anos uma tia, a pedido do pai de Alexandre, conseguiu o contato de um psicólogo que na época já entendia de assuntos da diversidade. Ao passar pela consulta, apenas uma certeza: Alexandre era uma transexual. O desejo de mudança no corpo veio com a orientação do médico que disse que os próximos passos seriam o acompanhamento psicológico, hormonal e que quando ela tivesse a idade correta passar pelo procedimento cirúrgico de redesignação sexual. Porém, como na época não havia um protocolo e a receita para medicação era lenta, ela resolveu adotar resultados mais rápidos e triplicou a dose, criando, assim, o seu próprio protocolo. Qualquer medicamento tomado de forma errada pode causar um resultado indesejado. Com o excesso de medicamentos, ela obteve o físico desejado, porém seu fígado ficou sobrecarregado obtendo problemas como trombose e taquicardias, que lhe forçaram a deixar os hormônios de lado.

 

A transexualidade ainda é tratada como doença mental conforme o CID 10 (Classificação Internacional de Doenças), embora haja uma expectativa de que isso mude assim que a CID 11 seja lançada. No Brasil, o assunto ainda é tratado com certas limitações. Apenas em 2010 o SUS passou a realizar atendimentos a transexuais que queriam fazer a cirurgia de redesignação sexual, apenas de homem – mulher (neovaginoplastia) somente em 2013, o SUS passou a realizar cirurgia mulher – homem (neofaloplastia) mas esta última ainda é realizada em caráter experimental.

 

Atualmente apenas em quatros estados brasileiros são feitos os atendimentos e cirurgias: São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Em São Paulo, as cirurgias realizadas pelo serviço público são realizadas apenas no Hospital Mario Covas, em Santo André e no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Apenas quem tiver mais de 21 anos pode fazer a cirurgia, mas antes precisa passar por dois anos em tratamento psicológico e hormonioterápico, para o gênero desejado, depois disso, é preciso aguardar na fila de espera pela sua vez na mesa de cirurgia.

 

Ao ser questionada sobre o desejo sexual, ela lembra “eu não tinha identificação nenhuma com a genital masculina, e não tinha vontade de me masturbar, por exemplo”. Era algo que lhe atrapalhava, onde o desejo maior era a remoção da genital. Aos 18 anos ela teve seu primeiro relacionamento com um homem bem mais velho. Os dois primeiros relacionamentos foram violentos. No segundo o pai dela teve de intervir, com direito a boletim de ocorrência e exames de corpo e delito. Ela ficou dos 18 até os 23 anos sem sair de casa por causa dos traumas com ex-companheiros.

 

Depois de passar por tratamento psicológico ela criou seu próprio website e foi para a militância em busca de direitos e de laudos que comprovassem a sua transexualidade para que ela pudesse fazer cirurgia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Aos 30 anos de idade, quase 10 anos com o laudo que a atestava e sem dinheiro para fazer a cirurgia em clinicas particulares ou fora do Brasil, ela procurou na internet como fazer uma orquiectomia, fazendo uma incisão bilateral, que é o corte entre os testículos. Maite estudou durante seis meses e comprou todos os materiais necessário para realizar o procedimento. Um fio de sutura, anestesia de dentista e bisturi foram os utensílios comprados. “Apliquei a anestesia de dentista e fiz o primeiro corte, não sangrou. Então resolvi ir mais fundo e, no segundo corte, eu já acordei no hospital”, lembra. Isso porque, minutos antes de começar a autocirurgia, Maite ligou para um amigo que trabalhava no Hospital Santa Casa e lhe avisou que se caso ela não ligasse em meia hora, ele poderia ir até sua casa porque algo de errado poderia acontecer. Nisso, os médicos que a atenderam pensaram que ela havia tentado suicídio, já que dos 14 aos 16 anos, a jovem tentou se matar duas vezes.

 

Após esse período, Maite ficou sabendo por meio de uma amiga, que mora em Foz do Iguaçu, de uma clínica clandestina do Paraguai que faz a retirada dos testículos de graça, caso o paciente leve todos os laudos necessários. A passagem de ida foi comprada no mesmo dia em que ela soube da clínica e, na manhã seguinte, depois de enfrentar 12 horas de viagem, foi para o hospital realizar a cirurgia. Durante as 8 horas de cirurgia, ela teve dois desmaios. No primeiro, o médico que estava operando Maite optou por desistir, mas depois de uma conversa ela o convenceu a continuar a cirurgia.

 

 

 

                Apliquei a anestesia de dentista e fiz o primeiro corte, não sangrou. Então resolvi ir mais fundo e, no segundo corte, eu já acordei no hospital.

 

 

 

 

 

A raiva pelo órgão era tão grande que ela quis trazer do Paraguai um dos testículos. “Durante a viagem de volta, eu apertava o testículo com ódio. Tinha uma senhora do meu lado que ficava me olhando assustada. Quando eu cheguei em Curitiba, eu simplesmente joguei na rodoviária e fui embora”, conta dando risadas.

 

A cirurgia para a retirada do pênis e construção vaginal aconteceu em outubro de 2005, realizou 14 cirurgias reparatórias durante sete anos. Sete cirurgias foram realizadas em São José do Rio Preto, depois mais sete foram feitas em Jundiaí, para a retirada de um tumor benigno e correção do novo órgão para que fique o mais próximo possível de uma vagina “real”. Foram três meses para saber se o órgão estava funcionando, mas para voltar à vida normal, bastou uma semana. “Foi um processo de descobrimento de um novo órgão”, lembra.

 

Assim como Maite, muitos transexuais viajam para outros países para fazer algum procedimento da cirurgia de redesignação sexual.Cerca de cem estrangeiros e sérvios passaram por cirurgias de mudança de sexo em 2011, na Sérvia. Geralmente, os pacientes são de países como França, Rússia e Irã, e de lugares tão distantes como Estados Unidos, África do Sul, Cingapura e Austrália. Até 2012, a Sérvia era o motivo pelo qual os estrangeiros se interessavam, já que se dizem atraídos pelo preço da operação. Isso porque a cirurgia de mudança de sexo custava, em média US$ 10 mil. Considerando que o dólar na época custava R$ 2,04, o paciente pagava pouco mais de R$ 20 mil para realizar o procedimento. Já nos Estados Unidos a operação era mais cara e não era feita por menos de US$ 50 mil (R$ 102 mil), em 2012.

 

Maite ficou casada com um homem durante quatro anos. Ele sabia da transexualidade, já que ela possuía uma vida pública e um site desde 1997. A mudança do nome só aconteceu há cinco anos, com a ajuda de uma desembargadora do Rio Grande do Sul, que pediu para Maite para participar do processo de troca de nome. Então ela, viajou para o Porto Alegre onde passou por uma série de processos inclusive ser avaliada por uma junta médica. “Foi muito constrangedor. Foram três médicos avaliando se eu parecia uma mulher, se eu tinha lábios vaginais, se o clitóris endurecia...”, lembra. Depois de seis meses o nome, sexo e o sobrenome foram alterados nos documentos.

 

Transgênero hoje é uma palavra muito comum, mas poucas pessoas sabem o que realmente significa, porém é mais simples do que pensamos ser. O transgênero é a denominação que cobre outros gêneros além do masculino e feminino. Campos da ciência fazem descobertas sobre gêneros, sexualidade e a raça humana com uma certa regularidade e hoje sabemos que há muito mais do que homem e mulher e as suas atribuições antiquadas. GenderQueer, DragQueen, DragKing, Travesti, Transexual, Assexual, Intersexual, são os outros gêneros, os esquecidos e marginalizados pela sociedade, mas que agora vem conquistando mesmo que timidamente um espaço para chamar de seu.

 

Diferente da sexualidade e da genital, a identidade de gênero se refere a forma como você se sente, se vê, se identifica como tal. Portanto, há os cisgêneros que são aqueles que se identificam com o sexo biológico na qual nasceram. Os transgêneros são aqueles que não se sentem confortáveis e sentem a necessidade de transitar de um gênero para outro, como os transexuais ou ficar transitando entre um e ou outro, como DragQueens, GenderQueer, e Travesti e aqueles que não se identificam com nenhum gênero, como os agêneros. Atração sexual é diferente do gênero que você identifica: uma transexual por exemplo, pode ser lésbica, bi ou hétero. Identidade de gênero, atração sexual e órgãos genitais são partes independentes.

      Eu fazia xixi na fralda até os 15 anos de idade. Isso acontecia quando eu passava longos períodos fora de casa, quando eu ia para a escola, por exemplo, então optava por usar fralda, justamente por não gostar de utilizar o banheiro masculino.

Maitê Schneider

Maitê Schneider

“Eu não tinha identificação nenhuma com a genital masculina, e não tinha vontade de me masturbar, por exemplo”

Maitê Schneider

Ser transexual hoje em dia não é uma tarefa fácil. A expectativa de vida deles é de aproximadamente 30 anos, de acordo com o IBGE, nos anos 80 então, mais complicado ainda. Fernanda Ribeiro nasceu em 1980 no interior do estado de São Paulo, sempre teve traços e trejeitos femininos, as tias dela sempre comentavam “Que menino estranho! Esse menino é bicha!”, mas ao entrar na escola, os pais mesmo não sabendo lidar muito bem a situação, a levaram na consulta com um psicólogo para que ele fizesse o

acompanhamento dela.

 

Enquanto criança, Fernanda ainda conseguia lidar relativamente bem com a confusão de sentir menina em um corpo de menino, mas com 10 anos não queria mais cortar os cabelos, sofria e chorava toda vez que a mãe a levava no cabelereiro. Depois de tanto incomodo, aos 13 anos deixou os cabelos crescer como ela sempre quis. Por nunca esconder o seu jeito de ser, a escola passou a se tornar um ambiente hostil e excludente. As crianças eram agressivas com ela, xingavam, batiam e ela devolvia na mesma moeda, o rendimento escolar caia semestre, após semestre, mas mesmo assim, terminou os estudos.

 

As aulas de educação física eram um tormento, queria brincar, praticar esportes “de menina”, mas era obrigada a jogar futebol

com os meninos.

 

No início da puberdade, quando os pelos começaram a aparecer e os seios não se desenvolveram como ela queria, Fernanda não aceitou as mudanças que começaram a acontecer no seu corpo, tentou se mutilar três vezes, se torturou porque se sentia culpada frequentemente por sentir, querer e se ver como mulher mas estar presa em um corpo biologicamente masculino. Por mais que seus pais davam um certo apoio e estrutura, eles não aceitavam que ela pudesse usar roupas comuns do vestuário feminino.

“Queria usar vestido, saia, roupas cor de rosa, mas meus pais não compravam para mim, foi por causa disso que comecei a trabalhar muito jovem, com uns 14 anos, aí sim, pude comprar meus vestidos, saias e calcinhas.”

Fernanda Ribeiro

Fernanda Ribeiro sempre considerou o ambiente escolar muito hostil e não é à toa que hoje é professora e da aula de artes para o ensino fundamental

Foi neste período que começou a usar hormônio, mas quando os seios começavam a crescer, ela parava de usar porque tinha medo dos pais verem. Também neste período, conheceu outras pessoas na mesma condição que ela e inclusive conheceu a prostituição e as drogas. “Eu vivenciei de tudo naquela época. Já que eu sou trans e é isso o que a sociedade me oferece, eu queria experimentar para hoje poder dizer que não é o que eu quero para mim.”

 

Durante muito tempo da adolescência ela achava que a cirurgia era a solução dos problemas mas, depois de muito tempo de terapia, entendeu que para ela é uma realização pessoal, particular e íntima.

          A sociedade não quer saber o que eu tenho no meio das pernas. Redesiginada ou não, para as pessoas eu vou continuar sendo um homem que quer ser mulher. Eu ainda estarei dentro do estereótipo do travesti.

Fernanda Ribeiro

Com 19 anos saiu da casa dos pais e foi morar e fazer faculdade de pedagogia em Uberlândia, Minas Gerais.O ambiente escolar continuou sendo muito difícil para ela, começou a fazer o tratamento hormonal para o sexo desejado, tomando estrogênio (hormônio feminino) com acompanhamento médico e voltou para o tratamento psicológico.

 

Depois de 11 anos longe da casa dos pais, ela se formou, trabalhou como operadora de telemarketing, juntou dinheiro por um ano para finalmente colocar o implante de silicone nos seios e ficou casada por 9 anos e voltou para São Joaquim da Barra, no interior paulista, onde dá aulas de arte para crianças do ensino fundamental de uma escola municipal da cidade. “Nós mulheres transexuais queremos ter uma vida normal, como qualquer outra, queremos casar, ter filhos, muitas adotam crianças. Eu consegui isso

por nove anos.”

 

São os próprios profissionais de educação que têm problema em chamar a Fernanda pelo o seu nome social. “Quando comecei a dar aula, me chamavam de professor Fernando. E aí quando algum pai me procurava na escola, esperavam ser recebidos pelo “professor Fernando” e eu chegava toda vestida de mulher e ficava aquela situação constrangedora. Por uma questão de necessidade eu tive que me envolver com movimentos sociais para poder me defender, poder exercer do direito de usar o meu nome social, poder me respaldar legalmente do meu direito que existe desde 2010.”

 

O “processo transexualizador” como é chamado no SUS, tem bons resultados mas demora muito. “Eu tenho amigas que estão na fila há muito tempo, tem uma que vai ter que aguardar até 2030, porque o SUS está liberando apenas duas cirurgias por ano”, comenta Fernanda Ribeiro. Por causa da demora, não é incomum ver que muitas mulheres trans viajam para a Tailândia afim de um processo mais rápido, bem feito e mais barato do que se realizado por clinicas particulares brasileiras. “Lá [Tailândia] a cirurgia, junto com a passagem de ida e volta custa em média uns R$16 mil. Aqui custa uns R$26 mil e corro sérios riscos de dar muito errado”, conta. Não é incomum encontrar notícias de médicos que cometeram graves erros durante qualquer procedimento cirúrgico feito

em mulheres transexuais.

 

O Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, vem recebendo uma demanda crescente de pacientes transexuais. De acordo com o Dr. Alexandre Saadeh, psiquiatra e coordenador do AMTIGOS, ambulatório responsável pelo atendimento de pessoas transexuais, 77 83% dos atendimentos no ambulatório são de adultos e 81,25% destes são mulheres transexuais e 18,75% homens transexuais, para ele as cirurgias não são apenas de fins estéticos e sim, terapêuticos.

 

Até 1984, o homossexualismo era considerado doença no CID. Para Josete Staino Villani, psicóloga especializada em transexuais, ainda hoje, a comunidade médica se refere aos transexuais como se eles tivessem um transtorno de identidade de gênero, já que os profissionais enxergam o desejo de mudança como um transtorno de personalidade.

 

O número de pacientes que Josete atende está dividido entre adolescentes e adultos. Durante a conversa, a psicóloga lembra que já acompanhou uma adolescente de 15 anos que já vinha de uma liberdade assistida, com uma agressividade familiar e social.

O tratamento para pessoas que não se sentem confortáveis com a forma que nasceram varia conforme o estado emocional, porém, de acordo com a psicóloga, durante as consultas o objetivo é que o paciente trace seu próprio caminho por meio de questionamentos. De modo geral, a função do psicólogo é escutar, analisar e se manter o mais neutro possível. “Geralmente uma pessoa transexual que busca ajuda já vem com um combo de problemas familiares e de auto-identificação”, conta. Ainda segundo a psicóloga, a pressão religiosa no País complica a questão do paradigma e do preconceito com o transexual.

 

Quando o transexual opta pela cirurgia de redesignação sexual, é recomendado que uma equipe médica, e não apenas o psicólogo, faça o acompanhamento. “Uma mudança repentina precisa ser avaliada. É preciso ter um respaldo de vários profissionais como o psiquiatra, endocrinologista e cardiologista”, comenta.

 

No dia do lançamento do clipe de Renata Peron, cantando a paródia Ferida, inspirada na música Comida, do Titãs, conversamos com algumas mulheres transexuais e perguntamos: como eles reagem quando elas contam que são trans?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Transexualidade infantil

A transexualidade também pode se manifestar em crianças, mas não necessariamente uma criança que apresente características transexuais, seja um transexual quando adulto, ou seja, isso pode ser uma fase de experimentação ou não. O AMTIGOS é o único lugar no Brasil que faz o acolhimento de crianças que apresentem características ou disforias transexuais, que é uma condição associada a um sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo do funcionamento social e ocupacional. O ambulatório atualmente recebe 22 crianças e suas respectivas famílias de diferentes lugares do Brasil como, Amazonas, Mato Grosso, Paraná, Goiás, São Paulo e cidades do interior paulista.

 

No entanto, este atendimento é realizado em caráter de pesquisa, porque aqui no Brasil ainda não há uma portaria que dê um respaldo para a realização dos atendimentos. Do total de transexuais atendidos pelo AMTIGOS 16,49% são adolescentes e 5,68% são crianças. O número de meninos que querem ser meninas é muito mais expressivo, tanto em adolescentes quanto crianças.

Identidade de gênero

Papel de gênero

Orientação sexual

Como este tipo de atendimento ainda não é preconizado no Brasil, o ambulatório do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clinicas, se baseia em protocolos mais antigos e bem moldados de outros países como, Estados Unidos, Bélgica, Holanda e Alemanha. Nos EUA, por exemplo, a primeira cirurgia para mudança de sexo aconteceu ainda em 1965, no John Hopkins Hospital, e foi autorizada pelo Tribunal de Baltimore.

 

De acordo com Daniel Mori, psiquiatra que presta assistência a crianças, adolescentes, adultos e seus familiares no AMTIGOS, no caso do acolhimento de crianças no ambulatório, é feito sempre com o acompanhamento de alguém responsável, seja por

parentes ou pelo abrigo.

 

Primeiro é feito uma conversa inicial de 30 a 40 minutos, para entender quais são as dúvidas e/ou angustias. Essa primeira conversa é acompanhada pelo médico psiquiatra, psicólogo e uma assistente social. Depois a criança passa pela análise individuais, onde vai ser avaliado se a criança está passando por algum outro problema que normalmente acompanha a transexualidade, como depressão ou atraso de desenvolvimento na escola, pede exames para saber se há alteração hormonal ou metabólica. Também são feitos testes psiquiátricos e a família toda passa pela análise com a assistente social. Depois destas três avaliações, os especialistas avaliam em conjunto o caso, dão uma devolutiva e propõem um tratamento que varia a caso a caso.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Raramente chega uma criança transexual já vivendo no outro gênero. As crianças são levadas pelas suas famílias por causa do seu comportamento, quando elas passam por exemplo, a ter predileção por roupas ou coisas do gênero oposto. “Supondo um caso de um menino que quer ser menina. Ele passa a querer se vestir com a roupa da mãe, pega maquiagem escondida, predileção por brincadeiras de meninas, ou verbalizar dizendo que é menina, se recusar a se chamar pelo nome do seu gênero

de nascimento.” explica.

 

Estas crianças se forçadas a ficar no sexo biológico que nasceram elas se fecham, vão mal na escola, ficam deprimidas, ou agressivas, assim como Fernanda, que respondia agressividade na mesma moeda. Por isso, é muito importante que a criança, a família e a escola mantenham um diálogo constante para que seja feito os ajustes necessários no ambiente escolar. “Quando a equipe e a família já têm uma certeza, e a criança já fez a transição de nome e roupas, nós encaminhamos para o endocrinologista para que ele faça o tratamento hormonal”, conta.

 

O tratamento hormonal é indicado na puberdade, mas caso a família e os médicos ainda tenham dúvidas, o indicado é que o adolescente tome um bloqueador para impedir o desenvolvimento de seios, no caso das meninas e barba, no caso dos meninos, por no máximo dois anos, até que seja tomada uma decisão de qual procedimento seguir. Assim que o adolescente parar de tomar o bloqueador, ele passa a se desenvolver normalmente, é um processo totalmente reversível.

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